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Saúde, bem público global: por que precisamos da OMS no combate à Covid-19?


Fonte: Diário do Povo Online    20.04.2020 13h56

por Lucas Felipe Wosgrau Padilha

O Combate à Covid-19 trouxe a OMS ao centro do debate público e diplomático: qual seu papel? Por que a China se dedica ao reforço da capacidade técnica e financeira desta organização global? Se os países são soberanos, por que cooperar ou adotar as recomendações da OMS, uma entidade global?

A mensagem original – e essencial - da Organização das Nações Unidas (ONU) ao conceber a OMS como parte de um sistema de coordenação entre países é a de que o mundo não deveria escolher entre paz, desenvolvimento econômico e saúde pública. A promessa seria irrealizável se não levasse em conta que a maioria dos países e pessoas do mundo estavam e estão à margem do poder econômico, financeiro e científico de países desenvolvidos. Para que a ONU não fosse uma ideia, mas uma importante realidade, os países deveriam assumir o compromisso – de longo prazo - de construir, a partir de recursos financeiros e humanos, uma ordem global provedora de bens públicos globais: paz, desenvolvimento econômico e saúde pública.

Para que seja um bem público global, o acesso à saúde deve ser não exclusivo, não rival e estar disponível globalmente: o consumo deste bem não deve o esgotar ou limitar sua disponibilidade aos demais. Bens públicos globais aumentam a confiança dos mercados, governos e sociedades no engajamento internacional porque dele advêm benefícios que, individualmente, os países seriam incapazes de construir.

Países do sul-global não teriam condições de participar da construção da saúde como bem público global, se não houvesse uma organização internacional capacitada cientifica e financeiramente para ajudá-los em seus desafios domésticos, ao mesmo tempo que os incluísse no próprio método de solução de desafios globais na área da saúde.

A Covid-19 é um chamado à realidade: como criar soluções fora da OMS para a maioria dos países do mundo – que estão na periferia da Europa, na Ásia, na América Latina e África?

A insegurança em relação ao papel da OMS no combate a Covid-19 – estimulada por países que querem impor aos outros seus valores ao invés de lhes estender a mão ou buscar projetos comuns – possibilita perigosas estratégias de desengajamento do sistema internacional.

A identidade da China bifurcada em potência global em busca de responsabilidades internacionais e país em desenvolvimento em busca da superação da miséria e da armadilha da renda média, é representada, principalmente em países ocidentais, como uma bipolaridade irreconciliável. Em alguns países – infelizmente é o caso do Brasil atual – existem desconfianças do papel da China no reforço da OMS para o combate à Covid-19.

A China lidera pelo exemplo ao relevar uma alternativa ao desengajamento.

Lacunas podem ser preenchidas com criatividade e por meio de relações bilaterais, regionais ou até mesmo globais, como é o exemplo dos BRICS dentre os quais há uma alta frequência de interações entre governos.

As desconfianças em relação a atuação da China no combate à COVID 19 partem de uma incompreensão – maliciosa ou não – de que a ação pública no combate à epidemia não poderia esperar a certeza científica: havia tempo a ser ganho – para que a ciência pudesse compreender a doença, seus tratamentos, buscar uma vacina e protocolos - e vidas a serem salvas. A drástica decisão de fechar Wuhan e depois isolar a província de Hubei deixaram o mundo perplexo e admirado: seria a crise assim tão grave ou a China estava flexionando seus músculos mostrando sua capacidade de mobilização? O tempo provou que o governo central acertou e corrigiu eventuais erros em uma velocidade impressionante, considerando que o vírus era um fato muito recente que ocorria no país com a maior população do mundo.

Na China, estudos clínicos foram realizados, protocolos foram estabelecidos – e traduzidos para muitas línguas, inclusive para português – e as pesquisas não param. Desde o começo da crise a China passou a tratar a Covid-19 como um problema mundial. O reconhecimento pela OMS de que a Covid-19 se tratava de uma pandemia dependeria de confirmações em todos os continentes.

O tempo da ciência e do governo não são o mesmo do vírus que se espalha vertiginosa e globalmente. Compreender isto é entender a relevância de uma organização realmente mundial que diminua a assimetria de informação entre países oferecendo soluções médicas e de gestão para o combate global a Covid-19, inclusive para países periféricos e do sul. Informação e soluções apresentadas pela OMS podem ser criticadas, mas não devem autorizar membros da comunidade internacional a desprestigiarem a OMS deixando de contribuir com o combate global a Covid-19. Isto é um perigoso oportunismo em um momento que o mundo precisa de mais confiança e governança global, não menos.

(O autor é o advogado graduado e pós-graduado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mestrando em Direito e Sociedade bolsista da Academia Yenching da Universidde de Pequim.)

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