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O olhar de Portugal sobre a China e a crise do Coronavírus

Fonte: Diário do Povo Online    07.02.2020 11h08

Por Pedro Sobral

Para os europeus, o rato é um animal infame que nos traz memórias da peste bubónica (a chamada “Peste Negra”), que teve o seu auge em meados do século XIV e vitimou dezenas de milhões de pessoas por toda a Eurásia. Na China, o pequeno roedor é reverenciado pelo seu raciocínio rápido, pela sua capacidade de acumular e manter objetos de valor, assim como um símbolo de boa sorte e riqueza.

Pois quis o Porco, signo regente do ano que acabava de findar, que o Ano do Rato ficasse associado, também na China, à doença, na forma da maior crise epidémica do país desde a SARS em 2002/2003.

Emanando da cidade de Wuhan, o alto grau de contágio do chamado “coronavírus” permitiu a sua propagação, a uma velocidade estonteante, por grande parte do território chinês. Observando, através da televisão e das redes sociais, o agravamento da situação e as dimensões que esta estava a tomar, os europeus gradualmente tomaram consciência de que seria apenas uma questão de tempo até que o coronavírus começasse a aparecer pela Europa, em virtude também do elevadíssimo número de cidadãos chineses que por cá viajam, estudam e trabalham.

Trabalhando como professor de Português na China (em Zhejiang, uma das províncias agora mais afetadas pelo coronavírus), regressei a Portugal no início de janeiro, por ocasião das férias de inverno. Na altura, mesmo na China, a dimensão da ameaça não era ainda conhecida, apesar de os primeiros casos de coronavírus em Wuhan terem verificado ainda em finais de dezembro do ano passado.

A situação geográfica periférica de Portugal, tão badalada entre nós como uma das causas endémicas do atraso nacional, servia de algum conforto ao português: a China fica longe e “pode ser que não chegue cá”. As medidas, tardias mas abrangentes e decisivas, levadas a cabo pelo governo chinês para conter o alastramento da epidemia, nomeadamente a quarentena imposta a Wuhan (“uma cidade com mais gente que Portugal inteiro!”, dizia-se com pasmo), pareceram tranquilizar também os portugueses. Causou também sensação, sendo imagem de encerramento de muitos telejornais, a “construção dos hospitais em 10 dias”, coisa que, diziam os portugueses com espanto e admiração mal escondidos, “só mesmo na China”.

Mau grado o aparecimento de diversos casos de coronavírus (inclusive na vizinha Espanha), Portugal tem sido poupado, pelo menos até ao momento da escrita deste artigo. Os dois casos de suspeita de contágio divulgados pelos média revelaram-se negativos e as imprescindíveis máscaras protetoras demoraram a esgotar nas farmácias e drogarias. Entre as autoridades de saúde portuguesas, parece imperar um clima de confiança no governo chinês e na sua capacidade de fazer frente a um evento desta magnitude.

Sem descurar algumas medidas de prevenção e de preparação para eventuais casos, acredita-se em Portugal que a China é mais que capaz de fazer a triagem dos cidadãos que abandonam o país, de modo a minimizar a propagação do coronavírus. Parece também ter existido um certo esforço, por parte dos órgãos de comunicação social, para desconstruir boatos e demonstrar que a situação em Wuhan não é tão má como fazem parecer algumas notícias sensacionalistas e filmagens potencialmente fabricadas.

O consenso entre os portugueses parece ser o de que a China tem a situação sob controlo e, mais do que qualquer outro país, possui os meios e a perseverança para ultrapassar este momento negro.

Provavelmente a consequência mais lamentável e perigosa para tempos vindouros é a onda de racismo e xenofobia que o alastramento do vírus pela Europa e pelos Estados Unidos tem trazido à superfície. Reações e comentários potencialmente racistas dirigidos a chineses ou asiáticos em geral, que pelas suas características físicas são associados ao coronavírus, têm surgido um pouco por toda a Europa e deram inclusive origem (mais uma vez em França, que conta, até à data, com 6 casos confirmados) ao movimento #JeNeSuisPasUnVirus (eu não sou um vírus).

Portugal não tem estado imune a polémicas relacionadas com o coronavírus. No passado dia 4 de fevereiro, numa rubrica do programa “Café da Manhã” da estação de rádio RFM, uma personagem interpretada pelo humorista Luís Franco-Bastos teceu alguns comentários satíricos relacionados com os chineses e o coronavírus e que feriram as suscetibilidades da comunidade chinesa em Portugal, que exigiu um pedido de desculpas. A mesma comunidade chinesa teme também possíveis prejuízos nos seus negócios em Portugal fruto de receios de contágio, chamando a atenção para casos de discriminação nas escolas, na linha dos que sucederam por conta da SARS em 2003.

Por fim, não poderia deixar de louvar o papel da Embaixada de Portugal na China e do governo Chinês no resgate e regresso a Portugal dos portugueses residentes em Wuhan, uma operação que se traduziu num sucesso e demonstrou uma notável sinergia e coordenação entre os governos das duas partes.

Portugal e, principalmente, os portugueses que, como eu próprio, possuem ligações profissionais e pessoais com a China acompanham os desenvolvimentos com um misto de angústia pelos crescentes custos humanos da epidemia, e de confiança em que a China será capaz de prevalecer perante esta e futuras provações.or

(O autor é um professor da língua portuguesa da Universidade de Estudos Estrangeiros Yuexiu de Zhejiang)

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