Mauro Marques
Jantares de fim de ano com os colegas de trabalho, abertura de presentes aqui e acolá, boa disposição no trabalho e fora dele, carrinhos de supermercado atulhados circulando por um manto vermelho de adereços característicos da ocasião festiva, já em contagem decrescente na cabeça de todos. Estava quase! O momento do descanso, do abraço fraterno da família, das gargalhadas e traquinices das crianças, de usar as roupas mais chiques e também mais descontraídas, de rever velhos amigos e vizinhos, de falar sem amarras o dialeto da terra, de saborear novamente aquele prato que apenas o calendário, por uma vez no ano, é capaz de temperar na perfeição. O Ano Novo
Chinês estava à porta, a nova década estava ao virar da esquina. O clima era de festa e nada mais importava.
Paralelamente, o porco, o animal do zodíaco de malas feitas para sair de cena, não estava satisfeito. Por ventura melindrado pela peste suína, engendrou um conluio com o companheiro pronto a rendê-lo, o rato, influenciando-o a “roer” as aspirações do povo chinês para o início do novo ano.
Infelizmente, assim foi. Wuhan, situada bem no centro da China, com 11 milhões de habitantes, é uma possante metrópole, considerada o coração dos transportes do país. O pulsar da massiva estação ferroviária que aloja, em consonância com a sua localização geográfica central, espalha através das suas artérias milhões e milhões de pessoas.
O resultado, é a situação tensa que hoje põe à prova, uma vez mais, a união do povo mais numeroso do mundo e, por acréscimo, alguns forasteiros que a China recebeu e que nela encontraram uma segunda casa. O autor deste texto é um deles.
Descrever o dia a dia de Beijing, cidade em que resido, desde que o surto do coronavírus deixou o país em alerta máximo é tão estranho quanto é para mim imaginar Wuhan, que visitei pela primeira vez em agosto do ano passado, com base nos relatos que chegam de lá.
Aqui, parece que o dia do Ano Novo Chinês se prolonga indefinidamente, através do silêncio das ruas de uma cidade que, tradicionalmente, vê a vasta maioria dos seus habitantes regressar às suas origens nesta estação. Findas as férias, porém, as lanternas continuam, estáticas, a enfeitar as grandes avenidas, cujo sinal de vida apenas se manifesta pelos esporádicos veículos que nelas transitam e pelos incógnitos mascarados que percorrem seus passeios.
Olhando atenciosamente, todavia, há diferenças. Nas portas de cada edifício estão colados letreiros a avisar da importância de usar máscaras no exterior, de lavar as mãos regularmente, de arejar a casa. Locais turísticos ou atividades com potencial aglomeração de pessoas foram encerrados. Subitamente (mais) folhetos forram paredes e elevadores onde funcionários de limpeza diligentemente apontam a hora a que cada desinfeção é realizada. As pessoas que usam transportes públicos são expostas à medição de temperatura. Espalham-se frascos de desinfetante em locais públicos.
Comportamentos prejudiciais como espalhar rumores infundados em redes sociais, aumento predatório de preços de bens essenciais ou outras práticas moralmente condenáveis são prontamente (e felizmente) repreendidas pelas autoridades.
Cidades em quarentena, ampliação do período de férias, racionamento e triagem escrupulosos das pessoas autorizadas a viajar, garantia da possibilidade de trabalhar a partir de casa, reforço dos quadros de profissionais de saúde, devidamente supridos com membros do exército, hospitais construídos em tempo recorde, demonstrações permanentes de solidariedade e campanhas despontam a toda a hora nas redes sociais.
Se tirarmos um momento para pensar no impacto social e económico, que se coaduna à questão da saúde pública, em que as pessoas se mantêm em casa e apenas saem quando estritamente necessário, como idas ao supermercado, facilmente temos noção da gravidade da situação e da importância que a solidariedade internacional assume neste momento.
Esta é a realidade que me rodeia e que sigo atentamente todos os dias, fazendo votos para que a normalidade seja reposta o quanto antes.
Não será, seguramente, neste momento, segredo para o mundo aquilo que o povo chinês é capaz quando se une por uma causa nacional. Estou confiante, assistindo às medidas resolutas aplicadas, que a China acabará por sair vitoriosa desta batalha. Recorde-se que o país já se debatera com um surto de pneumonia atípica no fatídico ano de 2003.
Resta esperar que no futuro, o rato apresente uma faceta mais cordial e brinde o povo chinês e o resto do mundo com melhores surpresas.
