Evandro Menezes de Carvalho
No ano em que se celebram os 40 anos da bem-sucedida política de reforma e abertura, a China inicia um novo capítulo de sua história: a nova era do socialismo com características chinesas. Esta expressão, que sintetiza o pensamento do Presidente Xi Jinping, remete à concretização do “sonho chinês” e ao objetivo de fazer da China “um grande país socialista moderno” por volta de 2050. Até lá, o Partido Comunista da China (PCCh) e o governo chinês terão o desafio de, no plano das políticas domésticas, garantir o desenvolvimento do país no contexto da nova normalidade econômica e, no plano da política exterior, a proteção do Partido e da nação contra eventuais hostilidades de potências estrangeiras receosas dos desdobramentos da inevitável ascensão chinesa ao pódio da economia mundial. Um caminho cheio de obstáculos. É dentro deste contexto que se deve encontrar as razões que motivaram as propostas de emendas à Constituição aprovadas nesta primeira sessão da 13ª Assembleia Nacional Popular.
A reforma da Constituição chinesa prepara o país para o futuro e, desde uma perspectiva histórica e ao contrário do que tem propagado a grande mídia ocidental, representa um avanço no quadro institucional e normativo do país. Apresento, aqui, três motivos:
O primeiro deles é a criação das comissões de Supervisão como órgão estatal. Esta medida terá como consequência o fortalecimento do “estado do direito” dado que a estrita observância das normas jurídicas por parte dos órgãos administrativos, judiciais e procuradorias, sob o olhar das referidas comissões, garantirá um ambiente de maior segurança jurídica para todos os envolvidos, sejam funcionários do Estado ou cidadãos, além de contribuir para aumentar a eficiência na prestação do serviço público. Ao institucionalizar a comissão de supervisão como novo órgão estatal, além de fortalecer o combate à corrupção, promove-se uma maior transparência da ação estatal.
Um segundo motivo decorre da emenda que outorga às cidades o poder de adotar leis, descentralizando ainda mais as instâncias de produção normativa e aumentando a capacidade das normas jurídicas de se adaptarem melhor às realidades locais. E o terceiro motivo é a inclusão do juramento de fidelidade à Constituição para todos os funcionários do Estado quando assumem uma função em um órgão estatal. Esta é uma medida que chama a atenção pois dá à Constituição um destaque que não se via até então na cultura jurídica chinesa. O juramento de fidelidade à Constituição, que pode ser percebido por alguns como uma obrigação protocolar sem grandes efeitos práticos, tem um valor simbólico inegável ao reforçar a percepção da relevância da Constituição no sistema de governança da República Popular da China.
Vale aqui, acrescentar, a emenda que inclui o “avanço ecológico” como nova função do Conselho de Estado, elevando ao nível de preceito constitucional o compromisso chinês com o meio ambiente. Esta emenda constitucional reflete o comprometimento jurídico e político do governo chinês com o Acordo de Paris, abandonado pelo presidente estadunidense Donald Trump. O direito do meio ambiente é apontado, ainda, como uma das prioridades para esta 13ª legislatura da Assembleia Popular Nacional. A China caminha, assim, para se tornar o país líder mundial em desenvolvimento verde.
A China atual é uma sociedade altamente sofisticada e complexa se comparada com a China de 40 anos atrás. Economistas afirmam que o país se tornará a maior economia do mundo por volta de 2030. Quando o Presidente Xi Jinping declarou no 19º Congresso Nacional do Partido que “a China se aproxima do centro do palco e faz contribuições maiores para a humanidade”, o Ocidente viu ali uma ameaça quando nada mais é do que uma constatação fática. E diante de um mundo instável onde as lideranças ocidentais estão fragilizadas em razão da corrosão dos seus modelos de governança devido à corrupção e à desigualdade social, suprimindo-lhes a legitimidade para governar, é uma grande vantagem para os chineses que a China tenha um governo forte o suficiente para garantir a estabilidade econômica e social do país. E, por outro lado, o mundo também tem interesse que a segunda maior economia do mundo tenha um governo estável, transparente nos seus propósitos e responsável internacionalmente. É neste sentido que a reforma do artigo 79 da Constituição, ao pôr fim ao limite de apenas uma única reeleição para o cargo de Presidente e Vice-Presidente, pode se revelar apropriado para a China.
As reformas constitucionais chinesas reforçam o papel do direito na governança da China, e são coerentes com a evolução histórica do país. Falta ao Ocidente reformar a sua visão sobre a China para poder compreender de maneira desideologizada a sabedoria chinesa e a prática chinesa de governar, de fazer leis e construir o seu futuro.
(O autor é professor de direito internacional da FGV e da UFF e Coordenador do Centro de Estudos Brasil-China da FGV.)