Nota: Mauro Ramos, correspondente da emissora brasileira TV dos Trabalhadores acreditado na China, vive no país por 2 anos. Entre os dias 4 e 11 de março, ele fez a cobertura das “Duas Sessões” da China, o evento político mais importante do país. Num artigo enviado ao Diário do Povo Online, ele compartilha suas ideias e opiniões sobre a democracia popular de processo integral.
Mauro Ramos está fazendo cobertura das “Duas Sessões” da China na frente do Grande Salão do Povo, em Beijing.
A Democracia Popular de Todo o Processo
Esta foi a segunda vez que cobri as Duas Sessões. Um dos dias mais importantes é quando o governo entrega o relatório à Assembleia Popular Nacional (APN). Antes de o primeiro-ministro iniciar a apresentação do relatório do governo, há a oportunidade de conversar com alguns dos quase 3 mil deputados e deputadas que circulam na entrada do Grande Salão do Povo.
As Duas Sessões Chinesas são as reuniões anuais da Assembleia Popular Nacional (APN) e da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPCh), um órgão consultivo composto por partidos (além do Partido Comunista da China, existem outros oito partidos), personalidades sem filiação partidária, organizações populares, minorias étnicas, entre outros.
Nas Duas Sessões o governo tem que apresentar um relatório de trabalho perante a APN, o órgão máximo do Estado na China.
A famosa jornalista chinesa e amiga Jingjing, me ajudou a conversar com alguns deputados. Fizemos uma entrevista conjunta com um representante da província de Yunnan. Ele estava um pouco nervoso. Pequeno agricultor, líder local, um dos quase 3 mil deputados presentes no mais importante evento político anual de um dos principais países do mundo e integrante do seu mais alto órgão político.
Numa conversa recente, a professora Lu Xinyu – uma distinta acadêmica da Universidade Normal da China Oriental (ECNU, em inglês) – afirmou que alguns observadores no Ocidente (no Norte Global realmente), frequentemente criticam as Duas Sessões considerando-as um mero “teatro político”. “Todos levantando a mão como se estivessem concordando”, diziam.
Ela explica o quão errados estão sobre o sistema político da China: as Duas Sessões nacionais são o resultado, não o início do processo.
Existe o nível nacional das 'Duas Sessões', mas o sistema está presente em todos os governos locais, nas províncias, condados, municípios, etc.
A professora Lu explica que os representantes e membros dos comitês locais devem coletar e organizar informações sobre questões relacionadas ao desenvolvimento socioeconômico e cultural de suas regiões, bem como demandas específicas.
Depois disso, eles irão apresentá-los em suas Duas Sessões na forma de propostas. Há questões que precisam ser resolvidas localmente, outras serão abordadas pelos deputados e deputadas nacionais das Duas Sessões.
Democracia de baixo para cima
A principal conclusão é que a estrutura política da China é essencialmente uma democracia popular.
O povo chinês só entra no Grande Salão do Povo para tarefas políticas, se recebe o mandato do povo.
Este ano também participei numa das sessões abertas das delegações provinciais. No dia seguinte à apresentação do relatório de trabalho pelo governo, cada província ou região tem as suas reuniões para discutir os relatórios e apresentar os seus próprios resultados, metas e desafios para o ano.
Tive a oportunidade de entrevistar a Sra. Wang Yinxiang, uma das deputadas da província de Shandong. Ela é uma pequena agricultora e secretária do partido na aldeia. Perguntei a ela sobre a importância do conceito de democracia popular em todo o processo.
“A democracia na China é um processo abrangente que valoriza plenamente as opiniões das pessoas de todas as esferas da vida e setores da sociedade, permitindo que todos compreendam e participem. Sou uma representante dos camponeses, vinda das bases”, disse Wang.
Um aspecto importante é que o sistema político chinês também é orientado a resultados: se houver um problema, ele precisa ser resolvido. A população local reclamará com os seus líderes ou os líderes conhecerão, comunicarão e discutirão os problemas em nível local e em níveis superiores.
É claro que isto só pode funcionar devido à centralidade do Partido Comunista da China. Para efeito de comparação, nunca haverá um problema de violência armada na China, porque nenhuma empresa está acima do PCCh, e o PCCh é centrado no povo e não no lucro.
“As propostas devem seguir o princípio ‘uma pergunta, uma discussão’: qual é o problema e quais são as possíveis soluções? Os representantes e membros do comitê devem realizar investigações aprofundadas, comunicar-se com os departamentos relevantes e assumir a responsabilidade pela viabilidade científica das propostas. Os governos a todos os níveis devem responder às propostas apresentadas”, explica Lu.
O outro elemento-chave é: consenso. Embora as discussões ocorram em nível local, “é necessário construir o maior consenso possível para que as propostas sejam implementadas de forma eficaz”, afirma a professora Lu.
Um princípio é o do respeito às diferenças. A China é um país muito diverso. Podemos aqui fazer uma comparação, por exemplo, com as democracias na Europa. A França restringiu o uso do “hijab” pelas mulheres e agora a Espanha também está discutindo proibir que mulheres o usem.
Embora o PCCh não professe nenhuma religião, não o vejo implementando esse tipo de medidas. Em vez disso, o que vejo é o governo financiando monastérios porque, neste caso, o budismo é um aspecto cultural importante do povo chinês.
Não há palavras vazias no relatório do governo. “Cada frase do relatório de trabalho do governo é respaldada por um complexo sistema de engenharia”, explica Lu.
As tarefas e objetivos propostos nas “'Duas Sessões' são como ordens militares dirigidas à nação e ao mundo, que devem ser cumpridas sem falta”.
Não conversamos sobre o tipo de comparação que eu queria fazer aqui. Mesmo assim, Lu Xinyu deu o melhor resumo em relação a este assunto:
“Este não é um jogo para os políticos ganharem votos. As brigas entre políticos no parlamento não significam democracia, mas apenas que a democracia não resolve os problemas”.
Com frequência, os representantes da China fazem questão de afirmar que o sistema chinês é um modelo desenvolvido para a China, o Socialismo com características chinesas.
E assim como em suas políticas de cooperação não há condições ou contrapartidas exigidas, a China tem o posicionamento de não querer “exportar” seu sistema política.
Mas do lado do Brasil e da América Latina não faria mal aprofundarmos nossa compreensão sobre seu sistema político, da mesma maneira que o país absorveu de diferentes países e regiões, incluindo o Brasil, e seu processo de industrialização.
Em nossa entrevista com a presidenta Dilma, ela disse que o Brasil precisa de um caminho propriamente brasileiro, mas que “esse caminho brasileiro não é o caminho do anticomunismo”.
Essa semana, na coletiva de imprensa da chancelaria chinesa nas Duas Sessões, o ministro de Relações Exteriores, Wang Yi, disse que os países latino-americanos não querem ser o quintal de nenhum outro país.
Entender e aprender sobre o Socialismo com características chinesas é uma opção que nossos países latino-americanos não deveriam se furtar de explorar cada vez mais.