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Opinião: o consumo de carne dos chineses e as alterações climáticas à luz do New York Times

Fonte: Diário do Povo Online    10.01.2020 16h19

No dia 7 de janeiro o New York Times publicou um extenso artigo intitulado “Impossible Dumplings and Beyond Buns: Will China Buy Fake Meat?”, onde é exposta a dificuldade de duas empresas estadunidenses de carne artificial acederem ao mercado chinês.

O texto começa por realçar as dificuldades impostas por supostos obstáculos “governamentais” e “culturais” referindo o fracasso da participação das empresas Impossible Foods e Beyond Meat na Exposição de Importação de Shanghai.

Com efeito, a presença destas empresas no evento internacional foi relegada para a “orla cavernosa de um centro de convenções” onde, aparentemente, se encontravam rodeadas por “empreendedores com ambições muito menos expansivas do que a transformação da indústria de carne global”, designadamente empresas de “portas de vidro e tapetes persas”.

A linha de raciocínio do artigo prossegue, passando a debruçar atenções sobre a consciência ambiental desta indústria, exemplificando com acordos firmados com companhias de fast food como a McDonald’s e a Burger King, que passaram a substituir produtos animais com substitutos derivados de plantas, “mais saudáveis” e “menos nocivos para o ambiente”.

E eis que a China, o “maior consumidor de carne do mundo” assume o protagonismo na narrativa. Os especialistas, refere o jornal, advertem para a importância que a indústria da carne tem nas alterações climáticas e, articula o texto, para o crescente consumo de carne bovina e suína na China, intrinsecamente ligado a “danos ambientais como escassez de água, vagas de calor e até mesmo à deflorestação da Amazônia”.

“De cada vez que alguém na China come um pedaço de carne, um foco de fumaça surge na Amazônia”, diz Pat Brown, CEO da Impossible Foods, acrescentando que a China é um “mercado absolutamente essencial e extremamente importante para nós”.

O restante do artigo discorre sobre as supostas dificuldades em aceder ao mercado chinês.

O encadeamento de argumentos dispostos no texto obteve, entretanto, reação por parte dos internautas chineses, impressionados pela forma como a informação é veiculada.

Seguem-se alguns comentários ilustrativos: “Dá a entender que os europeus e americanos são todos vegetarianos”; “Quantos quilos de carne consome em média um chinês por ano? Quantos quilos de carne consome em média um europeu ou um americano por ano?”; “Em termos de consumo médio, a Europa e os EUA consomem muito mais que a China, ainda por cima têm preferência por carne de vaca”.

Outro leitor refere abertamente o que será o cerne da questão: dualidade de critérios. A retórica utilizada, depreende, dá a entender que os EUA “praticamente não consomem carne” e cada vez que outros países o fazem “o mundo perde uma gota de sangue”.

Se atentarmos aos recentes dados da OCDE, é possível perceber a parcialidade destes argumentos, dado que o consumo per capita de carne é bastante superior nos EUA. Os números referentes às carnes bovinas são de 26,7kg anuais nos EUA face a 3,8kg anuais na China.

A referência à Amazônia induz uma reflexão perante dois casos recentes. Por um lado, os fogos da Amazônia, por outro, os que decorrem ainda na Austrália.

Quando a Amazônia ardia, inúmeros foram os títulos condenatórios que se espalharam pela imprensa, acusando as políticas predatórias do governo brasileiro e a ganância dos interesses industriais.

Já os fogos australianos, cuja área ardida e duração superam os fogos que assolaram a Amazônia, são ilustrados, ora na imprensa, ora nas redes sociais, com fotografias de crianças australianas oferecendo socorro a cangurus, entre outras imagens simbólicas da união celeste entre o ser humano e a natureza. Campanhas de donativos e de sensibilização discorrem pela internet.

Ora, a Austrália, com 18,3kg de carne bovina consumidos per capita ao ano, um dos índices maiores do mundo, segundo a OCDE, de acordo com esta lógica, não deveria ser também responsabilizada pelos incêndios que estão ocorrendo?

Os fogos no mundo desenvolvido são, portanto, documentados como consequência do acaso e de um ponto de vista de vitimização. Já os fogos no terceiro mundo refletem a avarícia, ganância e a corrupção.

Se nos fogos brasileiros a imprensa internacional usa palavras para descrever os acontecimentos como “histórico”, “recorde”, nos fogos australianos o foco recai sobre os esforços que a comunidade científica promove para compreender as alterações climáticas e a análise à biodiversidade afetada. Em suma, comparativamente, pouca referência é feita à posição do governo, embora tenham surgido relatos de “divórcio” entre os bombeiros e o governo australiano, culpabilizado de inércia.

Numa era em que o peso da imprensa tem repercussões amplas, é premente hesitar perante títulos bombásticos e imagens sensacionalistas, pois o consumo acrítico de notícias compromete a realidade dos fatos. 

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