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Ópera de Pequim: primeiras impressões da beleza de um tesouro nacional ameaçado

Fonte: Diário do Povo Online    03.05.2017 15h21

Por Samuel Gomes

De quando em quando, é natural que ao caminharmos pelas ruas de Tianjin, pressintamos o ambiente em redor ser subitamente perfurado por um som bizarro. Aquilo que escutamos são vozes que cantam em tom agudíssimo, ondulando em subidas e descidas constantes,dificultando a compreensão das palavras entoadas. É provável que fiquemos com a impressão inicial de que esta maneira de cantar contradiz o conceito de “afinação”. Ao encontrarmos a fonte do som, deparamo-nos com um elemento típico da paisagem citadina chinesa. À medida que pedala tranquilamente na sua bicicleta, um idoso chinês vem cantarolando, enquanto transporta consigo um rádio que emite esta melodia tão estranha para nós, mas, aparentemente, tão nostálgica para ele. Afinal, que melodia é esta? Na verdade, trata-se do som icónico desse tesouro nacional das artes performativas chinesas, que reúne mais de 170 anos de existência: a “Ópera de Pequim”. Este foi o nome que os ocidentais lhe atribuíram, mas se tal designação se encontra ou não totalmente correta, existem certos peritos chineses que gostariam de clarificar, por causa de questões ligadas à etimologia do termo em chinês.

A Ópera de Pequim, "Adeus, minha concubina"

Recentemente, tive a oportunidade de apreciar pela primeira vez um destes espetáculos ao vivo no Teatro Binhu de Tianjin. Tratou-se de uma coprodução entre o Instituto de Língua e Cultura Chinesa da Universidade de Nankai e o Instituto Profissional de Artes Aplicadas de Tianjin, onde foram reunidos amantes da arte, escritores e atores profissionais. Definiu-se por uma colagem de excertos de cinco peças, nomeadamente: “宇宙锋·修本” (A espada cósmica), “文昭关” (A fronteira de Wenzhao), “失子惊疯” (Enlouquecido pela perda de um filho), “卖马” (A venda do cavalo) e a reputadíssima “霸王别姬” (Adeus, minha concubina).

Assim que a cortina abre e o espetáculo inicia, perceciona-se um aspeto comum com outras formas tradicionais de teatro oriental. O estilo simbolista e sugestivo, imediatamente presente num espaço cénico, onde os poucos elementos cenográficos que revela são exuberantemente adornados. Encanta-nos a ostentação, a pujança dos figurinos e a caracterização facial dos atores — a qual comunica com o público através do seu padrão e cor, indicando-lhe a natureza da personagem. Denote-se que a Ópera de Pequim, à semelhança da Comédia dell’arte, apresenta e obedece a uma tipificação de personagens, ou seja, existe um catálogo, uma estandardização de caracterização. É um código visual que nos indica, previamente, o padrão de características da personagem, ou se, por exemplo, se trata do herói ou do vilão. Já os movimentos, esses escoram-se, graciosamente, em outros códigos gestuais e acrobacias pontuais, sincronizados com o instrumental interpretado por uma orquestra posicionada perto da asa de palco. As personagens cantam em tom agudo, sejam eles homens ou mulheres. Admitamos que este aspeto se tenha revelado, como se fazia prever, um tanto insuportável para os demais estrangeiros que, comigo, compunham a audiência. Mas devo ressaltar que este tipo de entoação preserva o panorama dos tempos antigos, em que as performances se representavam no seio de ambientes caóticos e o ator se via obrigado a modificar o tom de voz para se sobressair entre a multidão. E por falar nela, achei particularmente curioso o comportamento do público ao longo da performance. Aquando da entrada de uma personagem em cena, ou da execução de um movimento acrobático prodigioso, o público grita em alto e bom som “Hao!” (Bom!), enquanto aplaude, fervorosamente. Estão a incentivar o ator.

Porém, este tipo de espetáculo não se adequa ao gosto de qualquer um. Comprova-o o fato de o público ser composto, maioritariamente, por idosos, e de o espetáculo ser de longa duração. A dinâmica é, em grande parte, ditada pelo ritmo da cantiga e não tanto pela energia das ações físicas. A linguagem usada, de cariz clássico, desafia quem estuda a língua chinesa e, inclusive, os próprios jovens chineses, que admitem que somente os idosos entendem o conteúdo, por passarem tanto tempo entregues a este passatempo. Ainda que o palco esteja munido de ecrãs laterais expondo o que as personagens dizem, é complicado captar o sentido das frases. Reconhecem-se vários caracteres, mas é dificilmente percetível o sentido gramatical nas falas das personagens. Por estas mesmas razões, a “Ópera de Pequim” vê hoje a sua perpetuação ameaçada pelas novas gerações, que pouco interesse nutrem por ela. Foi esta a lamentação manifestada por um respeitado ator, já de idade avançada, no decorrer de uma entrevista realizada no interlúdio da peça, defendendo, em seguida, que os jovens deveriam valorizar as suas tradições, assegurando, assim, o futuro desta relíquia imaterial histórica e, com ela, a identidade cultural de um povo. Esta arte tem vindo, deste modo, a ser alvo de reformas que procuram atrair mais público, preservando a beleza performativa que a tornou tão popular durante a dinastia Qing.

*O autor é mestre em Estudos de Teatro pela Universidade do Porto e licenciado em Línguas e Culturas Orientais pela Universidade do Minho. Atualmente encontra-se a frequentar um curso de língua e cultura chinesas na Universidade de Nankai, em Tianjin. 

1 comentários

[email protected] - 04-05-2017 03:18:30
Também tive o mesmo tipo de experiência em Pequim 2016, não foi exatamente no mesmo teatro, mas corresponde à descrição do Samuel. Verifiquei a total falta de investimento nesta forma de ópera que tem um enorme poder sedutor sobre o olhar ocidental. Quando solicitamos à guia turística que estavamos interessados em ir, verificamos a sua total surpresa. A resposta foi - não sei se há, mas vocês não vão perceber nada. Tivemos que insistir. Mas o que encanta não é perceber as velhas palavras em chinês, é a música em tempo real com timbres nunca ouvidos, tocada em instrumentos ancestrais, as pinturas e expressões faciais, as movimentação, as acrobacias e o fabuloso guarda roupa. A China terá muito a ganhar se investir na sua cultura milenar e não se deixar ocidentalizar/vandalizar pela cultura fácil da diversão e da atração pelas novas tecnologias.

Grande abraço, Samuel
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